segunda-feira, julho 10, 2006


Ela estava toda empolgada novamente. Isso sempre acontece. Crises, alegrias, dramas, tudo intercalado. Chegou cedo, com um sorriso no rosto, contando da nova aquisição em sua cama. Falava assim, naturalmente, dos detalhes mais sórdidos da noite anterior. E eu, que sempre pedia para que não me contasse nada, não era atendido. Ela acha que é charme que faço, mas não, não quero saber de nada. Dói. Não que isso faça alguma diferença. Nunca fez. Desde antes é assim. Com cara de criança ela me conta suas peripécias e eu escuto, mudo. Não que eu a ame. Não amo. Nem ela. Nem outra. Ou outro. Ela não foi feita para ser amada, segundo o que ela me diz. E não acredita ser capaz de amar. Devoradora de cabeças, como tantas outras por aí. Usa, abusa e vai embora. Ela é boa nisso, muito boa. Ela fala que nunca amou ninguém e que já teve quem achasse que a amava, mas era mentira, amavam uma parte dela, não ela toda. Ela diz que só eu a conheço. Mentira também, duvido que a conheça. Diz também que sabe que um dia irá se apaixonar perdida e amargamente. E que sofrerá. Quase como se acreditasse em justiça. E que quando esse dia chegar, não quer sofrer calada. Gritará sua dor aos quatro ventos, apenas para saber do que falam os amantes. E ela fala isso tão naturalmente, que duvido que um dia aconteça. E se acontecer, acho que ela que provocará isso. Como sempre provoca. Quando menina, era respeitada por todos, nunca ninguém se atrevia a brigar com ela. E ela odiava isso. Queria que alguém a enfrentasse. Era pequena, mas queria arrumar confusão para provar que merecia tal respeito. Um dia, um sujeito mais velho se engraçou para cima de uma amiga, e ela logo foi para perto. Berrou, esperneou, chamou o coitado dos piores nomes. Ele era enorme e partiu para a briga, como ela queria. Ela estava perdendo, mas girou a cabeça e grudou os dentes no braço do menino. Ele urrava e ela lá, grudada. O pátio estava cheio, uns apoiando-a e outros do lado do garoto. Ela só largou quando a diretora a puxou pelos cabelos. O menino chorava, olhando para o braço que sangrava. Nunca ninguém mais se pôs em seu caminho. E desde então sempre tem sido assim, conquistando respeito, medo e admiração. Provocando respeito, medo e admiração. Eu estava naquele dia. Muitos amigos foram e vieram, porém eu continuei. Como um amigo imaginário, aquele que não ocupa muito espaço. Não digo que ela não me dê valor, seria injusto. Sou um amigo passivo. Que mesmo brigando e discordando, sempre estou com ela, por mais errada que esteja. E ela é tão linda quando dorme, se parece com os anjos que povoavam meus sonhos quando criança. Ou os anjos eram ela, não sei. Ela é meu karma, ela me diz. E eu acredito. Ela me faz mal e ao me fazer mal, me faz um bem danado. Por isso já tentei me afastar. Mas ela é meu vício, eu digo. Ela fala que eu sou o lado bom dela e que se uma dia eu me for, ela será para sempre malvada e pedirá o coração da Branca de Neve numa caixa. Eu digo que sempre preferi a madrasta, ela é muito mais bela que a Branca de Neve. E ela sorri. Um sorriso doce. Que não parece ser dela. Que deve ser de uma faceta muito bem escondida. De um lado frágil, quase inexistente.
(Texto muito, muito antigo)

6 comentários:

War Inside My Head disse...

Um vinho se bem guardado, só melhora com o tempo.

Whisky sempre é "antigo".

Um texto antigo também tem seus méritos ;)

Paulinha Barboni disse...

Muito,muito antigo.porém muito ..muito bom...
Por que será que as pessoas em que nos viciamos também nos fazem um mal que parece necessário? estranho isso né?
Beijos!

Paulinha

Shaula disse...

É uma boa pergunta.
Mas eu acho que é pq o "mal" nem sempre é assim tão "mal".Depende muito.

Anônimo disse...

Perfeito, da vontade de ser a menina do texto, vc sabe q vc faz parte de alguem e q seu mal pode ser amor, ou ate mesmo um karma, com um lado bom e ruim, q faz rir de uma forma diferente e perceber q todos acharam um sentimento fragil q parecia nao ter....

Anderson. disse...

Agridoce

Anônimo disse...

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